quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Por que com razão ou sem a chuva chora sua alegria?

Outro tema lá do Bolo Inglês. As reflexões é que são do Vico, que garantiu que do lado de lá do mundo não chove... Faz sentido... O texto é da época das Olimpíadas em Pequim, 2008.



Na China não chove. É do outro lado do mundo, as nuvens ficam depois do chão e as gotas caem para lá do depois, sem molhar as casas, os prédios e as pessoas. Virado do avesso, o cérebro da criança enxerga o que ninguém vê, admira o que poucos entendem e nenhum pingo de temporal chora o suficiente para demonstrar a alegria de conviver com um ser humano em formação. Ele não sabe que até chove em Pequim, mas pouca gente percebe. As densas nuvens sob a qual estão envoltos é de permanente poluição. A despeito da atitude antiesportiva dos americanos,que não precisavam ter feito aquela afronta e desembarcar nos jogos olímpicos usando máscaras de oxigênio, o ar de Pequim é impossível de ser respirado. Para ele, isso é irrelevante. Se alimenta de outras brisas, pouco liga para esportes, detesta futebol, faz natação porque a mãe manda, agora parece que está tomando gosto pela coisa. Por ele, cavaria um buraco no chão da sala que pudesse chegar até a China, uma genuína filial da fábrica do Papai Noel. É lá que fazem todos os brinquedos, acredita. Made in China. O carrinho, o Power Ranger, o Bem 10, o binóculo, até o guarda-chuva e o estojo. Quero ir para lá. Eles vieram para cá. Cem anos de imigração chinesa, pai! Não, é japonesa. Ué, não é tudo igual? Só os olhos são puxados. Bem, as roupas são de seda. E as diversões são eletrônicas. No Japão, pense bem, também não chove. Em qualquer lugar que fica para lá do depois, no além dos além, como diria Estamira, o céu não chora. Ele coça a cabeça, firma o polegar no queixo, pensador, e dispara. Em terra de gente que sorri com os olhos, a chuva só chora de alegria. Tristes de nós, poluídos de carência, chuva ácida sob os pés, que, sem dó, castiga.

O pé sem corpo

Algumas idéias de histórias sugeridas pelo Vico acabaram virando temas para nosso textos lá no Bolo Inglês, o grupo da oficina literária. O pé sem corpo foi um deles. Deu nisso aí...


Ela é duas e vive dividida. Uma atua. Outra é ela. Há dias em que não consegue entrar em cena. E quebra. A outra invade a uma e instaura o caos. Não hoje.
Como um ovo espatifado, uma gosma de clara e gema, disforme, sem a proteção da casca, nem o calor do ninho, ela acorda, sem a outra. O peito arrebenta oco, sem emoção. Olha em frente e reconhece aquele sorriso que já foi dela, as curvas bem torneadas, as pernas fortes, os seios fartos. A outra saiu de si. Encarnou e está ali, pronta para conquistar a vida que ela nunca teve coragem de viver. Vai se jogar de cabeça, sem amarras, nos corações sem dono. Irá beijar todas as bocas que tiver vontade, ler todos os livros sem ninguém para interromper, conhecer todas as cidades, vai desafiar os verbos no infinitivo, correr, nadar, navegar, naufragar, delirar, apanhar, bater. Usará o resto do tempo que tem sem deixar nenhum segundo fazendo nada. Só quando fazer nada fizer bem. Vai vestir camisas deles, comer pipoca na sala, com champanhe de primeira e homens de segunda, andar de salto alto e minissaia, bem vagabunda, pintar bocas de vermelho, unhas de vermelho, dentes de vermelho, morder línguas. Pedirá demissão, mandará patrão pastar, encontrará o que fazer, um jeito de se bancar, dormirá até mais tarde, sem responsabilidade, e terá até quem lhe traga café na cama, a danada. Animada, ela bota os olhos de pestanas longas para baixo e, surpresa. O corpo todo se fez, menos os pés. Os pés de moça, bem cuidados, estão ao lado, não grudaram nela.
Inteira em sua ferocidade, aquela outra que era ela não pode se mexer. Flutua, estupefata. É um fantasma atrás da cortina, presa pela grade da varanda, sem ter para onde ir. Os pés burilam no chão, como mães bronqueadas, e se negam a ela. Se recusam a ser dela. São pés sem corpo, não darão a ela esse gostinho, de sair pelo mundo e ser feliz. Aquelazinha não vai dançar, rodopiar, gargalhar, se embriagar, se empanturrar, se apaixonar, dar para um qualquer, qualquer um, amar e ser amada, ou nada. Ficará ali, cheia de vida e sem caminho.
Ela suspira aliviada, como se tivesse se livrado do pior de si. Levanta da cama e encara a outra, que nem chorar consegue, tão assustada e aflita que está, tão cheia de volúpia e ódio, ódio daqueles pés teimosos que não se encaixam nela. Ela sorri leve, deixou de ser de mentira, fajuta, falsa, para inglês ver. Poderia continuar no palco sendo tudo o que esperam dela, sem sofrer. Ela seria verdade. A outra, que era ela, morreu nela, saiu dela, e, quanta ironia, ficou presa num corpo se pés. Não vai poder nada do que queria, bem feito, filha da puta. Ela, que sempre soube quão perigoso é amar de verdade e queria tanto viver assim, sem paixões, só não conseguia por causa dela, daquela louca. Ela a deixava trancada no porão, mas não adiantava, não resolvia. Uma hora, a outra arrebentava o cadeado, e dava no que tantas vezes deu. Agora acabou. Tinha corpo, não tinha pés. Ela estava inteira.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

QUARENTA ANOS

Escrevi quando fiz quarenta... Achei nos meus arquivos e trouxe pra cá, dois anos depois.



Cresci lendo Paulo Francis e vendo seus comentários à noite na TV, com seus hiatos e ditongos estendidos, parara encerrar as frases em queda brusca, numa entonação que só ele tinha. Também me lembro de Ibrahim Sued, num cenário de Globo Repórter com Nacional Geografic, ademã que eu vou em frente. Também vi Clodovil e seus desenhos alongados, na TV Mulher com trilha de Rita Lee, mulher é bicho esquisito, todo mês sangra, ancorada por Marília Gabi Gabriela e Ney Gonçalves Dias. Tá, tá, tá... também vi Paula Saldanha e seus cabelos escorridos na TV Globinho e, yes, cantei Mio e Mao, Barbapapa e marmelada de marmelo, no tempo em que a Cuca Dorinha Duval se retirou de cena por matar o marido. Mas quem ama não mata, separa. E vi Malu Mulher começar de novo e contar consigo, e com a Narjara Tureta, que acabou vendedora de suco no Rio. Mas ninguém fez mais a cabeça da minha geração do que a dupla Cristina Franco e Beth Lima no Ponto de Vista, chamado com ginga por Leda Nagle, todo sábado na hora do almoço. Aquilo era moderno. Taão moderno como Francis nos estúdios de Nova York, Central Park ao fundo. O mesmo Francis que escreveu, em 1991, para o suplemento Cola do Estadão, uma lista com os livros que ele considerava mínimos para alguém ter cultura. Chequei a lista e tiquei uns dois ou três. Não li os clássicos, só aqueles por obrigação. Gostava mesmo era de ver televisão. O cinto de inutilidades, todo dia é dia, toda hora e hora... Amigo e companheiro. De ver os desenhos e de chorar com os gingles. Quero ver você não chorar, não olhar para trás, nem se arrepender do que faz. Quero ver o amor nascer e se a dor crescer você resistir e sorrir. Eu quero ter um milhão de amigos e bem mais forte poder cantar, dizia o rei Roberto Carlos em toda véspera de Natal. Aquele especial de 24 de dezembro era tão sagrado quanto a São Silvestre à meia-noite do réveillon, com a Paulista toda iluminada. Francis não correu maratonas. Mas deu um baile na linguagem, no jeito de ver e de falar das coisas. Cresci lendo Francis. Fora ele, eu era mais o boa noite do Cidão Moreira e os documentos que atestava Censura Livre e tradução Herbert Richards, São Paulo. O que será que Francis acrescentaria em sua lista original de lá pra cá? Paulo Coelho? Eguinha Pocotó? A bananada de banana continua no ar, mas não se fazem mais Cucas viscerais e doidas como antigamente. Quem ama não mata, e hoje vemos Doca Street, falando em dor para o Geneton Moraes Neto, que acha que faz as perguntas mais inteligentes do mundo. Vá ler Francis, meu amigo. Vá ler Mencken. Veja Mainardi. Quem quer polêmica bate duro e não assopra. Da lista de Francis tirei Thomas Mann e convalesci lendo A Montanha Mágica. Très jolie. Empaquei nas páginas em francês, mas agora prometo retomar. Je sui desolé, mas estou aprendendo, enfim, a falar francês. Não serve para nada, mas me prometi que leria Mann até o final, e não morro sem fazer isso. Vou dispensar o Herbert Richards desta vez. Não quero versão brasileira. Não vejo mais televisão, só o estritamente necessário. Necessário é seguir o conselho do Francis. Mas, meu caro, será mesmo que eu preciso mesmo ler a Teoria da Física Quântica? Dá pra pular esse pedaço? Pena que vida não vem com tecla foward. Se naquele tempo pudesse dar um FF, teria desligado a TV e ido estudar mais, e mais cedo. Mas nunca é tarde, certo (né João)? Sorry, periferia. Ademã que eu vou em frente. “Eu te amo meu Brasil, eu te amo; ninguém segura a juventude do Brasil.” Aff! Será que não tinha trilha sonora melhor para embalar o ufanismo da ditadura? Poderiam ter usado ‘o barquinho vai, a tardinha cai’. É mais nosso jeito, a nossa cara. Uma coisa carioca, um gringo em Nova York, um apê de aluguel na Vieira Souto, e Chico em Budapeste, pro dia nascer feliz. Beijo pro maluco do Cazuza e para a doida da Eller. Viva o povo brasileiro, eu adoro os viscerais. Bye, bye queridos, que o tempo não pára. Se ninguém acha que eu sou careta, eu sou manchete popular. Estou cansada dessa falta do que falar. Pai, afasta de mim esse cálice, de vinho tinto de sangue. Tragar a dor engolir a labuta, de que me vale ser filho da santa, melhor seria ser filho da outra. Ops, classificação 14 anos. Sai da Sala que a Dona Redonda vai explodir, o Juca de Oliveira tem asas, Sonia Braga é o estopim da bomba e nós continuamos vivendo, todos, na mesma Saramandaia. Chame o síndico! Chame o Odorico Paraguassu! Inaugure o cemitério que quero morrer virgem. Me embriagar antes que alguém me esqueça. Um beijo na Cecília, na Marília, nas crianças. O Francis aproveita pra também mandar lembranças. A todo pessoal, adeus.