quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

O pé sem corpo

Algumas idéias de histórias sugeridas pelo Vico acabaram virando temas para nosso textos lá no Bolo Inglês, o grupo da oficina literária. O pé sem corpo foi um deles. Deu nisso aí...


Ela é duas e vive dividida. Uma atua. Outra é ela. Há dias em que não consegue entrar em cena. E quebra. A outra invade a uma e instaura o caos. Não hoje.
Como um ovo espatifado, uma gosma de clara e gema, disforme, sem a proteção da casca, nem o calor do ninho, ela acorda, sem a outra. O peito arrebenta oco, sem emoção. Olha em frente e reconhece aquele sorriso que já foi dela, as curvas bem torneadas, as pernas fortes, os seios fartos. A outra saiu de si. Encarnou e está ali, pronta para conquistar a vida que ela nunca teve coragem de viver. Vai se jogar de cabeça, sem amarras, nos corações sem dono. Irá beijar todas as bocas que tiver vontade, ler todos os livros sem ninguém para interromper, conhecer todas as cidades, vai desafiar os verbos no infinitivo, correr, nadar, navegar, naufragar, delirar, apanhar, bater. Usará o resto do tempo que tem sem deixar nenhum segundo fazendo nada. Só quando fazer nada fizer bem. Vai vestir camisas deles, comer pipoca na sala, com champanhe de primeira e homens de segunda, andar de salto alto e minissaia, bem vagabunda, pintar bocas de vermelho, unhas de vermelho, dentes de vermelho, morder línguas. Pedirá demissão, mandará patrão pastar, encontrará o que fazer, um jeito de se bancar, dormirá até mais tarde, sem responsabilidade, e terá até quem lhe traga café na cama, a danada. Animada, ela bota os olhos de pestanas longas para baixo e, surpresa. O corpo todo se fez, menos os pés. Os pés de moça, bem cuidados, estão ao lado, não grudaram nela.
Inteira em sua ferocidade, aquela outra que era ela não pode se mexer. Flutua, estupefata. É um fantasma atrás da cortina, presa pela grade da varanda, sem ter para onde ir. Os pés burilam no chão, como mães bronqueadas, e se negam a ela. Se recusam a ser dela. São pés sem corpo, não darão a ela esse gostinho, de sair pelo mundo e ser feliz. Aquelazinha não vai dançar, rodopiar, gargalhar, se embriagar, se empanturrar, se apaixonar, dar para um qualquer, qualquer um, amar e ser amada, ou nada. Ficará ali, cheia de vida e sem caminho.
Ela suspira aliviada, como se tivesse se livrado do pior de si. Levanta da cama e encara a outra, que nem chorar consegue, tão assustada e aflita que está, tão cheia de volúpia e ódio, ódio daqueles pés teimosos que não se encaixam nela. Ela sorri leve, deixou de ser de mentira, fajuta, falsa, para inglês ver. Poderia continuar no palco sendo tudo o que esperam dela, sem sofrer. Ela seria verdade. A outra, que era ela, morreu nela, saiu dela, e, quanta ironia, ficou presa num corpo se pés. Não vai poder nada do que queria, bem feito, filha da puta. Ela, que sempre soube quão perigoso é amar de verdade e queria tanto viver assim, sem paixões, só não conseguia por causa dela, daquela louca. Ela a deixava trancada no porão, mas não adiantava, não resolvia. Uma hora, a outra arrebentava o cadeado, e dava no que tantas vezes deu. Agora acabou. Tinha corpo, não tinha pés. Ela estava inteira.

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