terça-feira, 18 de novembro de 2008

Tema: A alface, a bicicleta e o violino

Ela desceu apressada do carro, olhando em volta com medo de soslaios à espreita. Ninguém. Não viu viva alma. Pagou o táxi nem sabe com quantos dinheiros, fique com o troco, o moço entendeu nada. A maleta do instrumento debaixo do braço, esgarçando ainda mais o decote do vestido. Verde. Ela gostava de verde. Verde alface. Ele nem tanto, mas raro reparava na roupa que ela usava. Não iria prestar atenção hoje. Tanto zelo para acabar numa mesa de boteco pé sujo no baixo Gávea. Minerva esteve ótima no concerto desta noite, mas queria se livrar daquela pele de cordeiro e desabar dentro do abraço dele, para sempre. Nada impediria Zeca de beber mais um chope, nem o olhar de ressaca dela. Dor de cabeça era o que ele teria se continuasse ali, debruçado no logotipo da Brahma, avacalhado como sempre. Uma mulher tão erudita não podia estar apaixonada por um fulaninho tão fubeca. Mas estava. Zeca enganava bem. Morava bem, herdara uma boa grana dos patrões, para quem dirigiu desde os 16 anos. Os filhos, ingratos como são todos os criados com excessos, sem limites, ficaram fulos da vida ao lerem o testamento de Dona Hermínia e do Doutor Elias. Como assim, o motorista entre os beneficiários? Tentaram anular o documento, sapatearam, espernearam, mas à luz da lei, Zeca, o chofer, como o casal sempre o chamou, tinha ficado com o apartamento da Rua dos Otis, com o carro, e mais uns bons tostões no banco. Foi merecido, acreditava Minerva. Tantos anos se dedicando àquela família, eles tinham agido bem. Zeca ainda tinha medo de morrer numa emboscada armada pelos filhos do Doutor Elias, mas, em noites como aquela, dava de ombros até para a morte, e só pensava em refrescar a goela, um, dois, cinco, dez chopes esôfago abaixo. Depois que ganhou aquele dinheirão, ele nunca mais botou os pés num acelerador a serviço. Só a passeio. Para o dia-a-dia, preferia bicicleta. Minerva apreciava isso nele. Também ela gostava de andar por aí pedalando, e sonhava com o dia em que ele a convidaria para um passeio na Lagoa. Nunca que ele a chamou. Até aquela hora. Bêbado feito um jumento, Zeca cambaleou, sussurrou algo no ouvido de Gilson, o garçom, deve ter pendurado a despesa, apesar daquele dinheirinho de pinga não fazer a menor falta, botou a mão pesada no cangote de Minerva e quase a ergueu. Vamos mulher, vamos andar de bicicleta. Minerva tremeu. O violino? Onde ela levaria o violino? Gilson, vem cá, guarda para mim, por favor, amanhã eu pego, qualquer hora passo aí. Minerva abandonou no bar o Stradivarius, era um parecido com aquele que foi vendido em Nova York por US$ 5 milhões, preço jamais alcançado por um instrumento musical em leilão. O dela talvez não fosse tão valioso, vai saber. Talvez nem fosse Stradivarius. Nada valia mais do que aquele passeio de bike pelo Jardim Botânico com o Zeca, o seu Zeca. Ele, ela, a bike, a brisa, a noite, o Cristo. Ah... alegria que não cabe em dinheiro nenhum do mundo. Lá foi Minerva, vestido verde de seda, sem violino, sem sandália, sorria. Zeca subiu apressado a rua, chegou na garagem do prédio, tirou sua bicicleta da parede onde estava pendurada, e vagou uns minutos por ali para encontrar outra que servisse para Minerva. A da vizinha do 52 estava em bom estado, arrancou a bichinha do gancho, e a entregou para uma Minerva cada vez mais atônita e incrédula. Então era verdade. Eles iriam passear de bicicleta pela noite quente do Rio, quem sabe chegariam até o Leblon, e cruzariam a Delfim Moreira, e iriam dar na praia. Enquanto vagava, Zeca montou no camelo e saiu em disparada. Minerva correu para alcançá-lo. Ele descia a rua com fé, brisa na cara, sem medo, peito aberto. Ela veio logo atrás, atrapalhada que estava com a barra da roupa de gala. Contornaram a praça, um, dois, três quarteirões adiante, Zeca parou. Não queria nada. Só esperar por ela, que continuava mais lenta do que ele. Agora andavam lado a lado, um olho no asfalto outro na pele, ele ainda cheirava álcool, ela reluzia música clássica. Quando viu a praia, Minerva calou. Viver um sonho apavora. Ela tinha certeza de que quando algo vai bem demais, vem desgraça. Zeca ria desse jeito de ela pensar, e dizia, calma Maria, vambora. Minerva nem ligava de ser chamada assim, ele fazia só para dar graça à conversa, como a gente chama de Zé qualquer Mane, ele chamava Maria, qualquer virgem santa. Desmontou da bicicleta, descalçou as Havaianas, e afundou a areia com sua pegada 42, quase 43. Medo. Minerva temia ser feliz. Avistou um aceno com as mãos e foi. Deus estava de bom humor e não propôs nenhuma desgraça. Nenhuma bala perdida passou. Nenhum pivete ou canivete. Traficantes, putas, ladrões, malandros de toda espécie tiraram folga naquela madrugada. O mar do Leblon amanheceu sereno.

Tema: Um presente para você

Ele dá a primeira mordida e a boca amortece, as bochechas ardem. Os olhos sorriem e, aos poucos, ele se desintegra. Ela sabe o motivo e gargalha sem mostrar os dentes, só por dentro, numa alegria que faz cócegas na garganta. Passara a tarde no supermercado. Casa de moço solteiro, ele não tinha nenhum apetrecho dos que seriam necessários para fazer o bolo. Saiu logo depois do almoço, e dividiu os corredores com senhoras arrumadas, que davam ordens às criadas, com empregadas sozinhas e eficientes, dessas que fazem a lista de compras e resolvem a parada sem a patroa por perto, e com garotas jovens, desempregadas e bem casadas, noivinhas felizes que começavam a se dedicar à vida a dois com empenho de executivas do mercado financeiro. Misturou-se àquelas mulheres como se fosse uma delas. Até poderia ser, mas se sabia diferente, e se divertia sozinha imaginando o que aquelas donas diriam se soubessem que seus ingredientes não eram os comuns, só pareciam iguais a todos os outros. Comprou uma tigela de louça branca, um pão duro, colher de pau, uma espumadeira para bater claras em neve, assadeira, farinha de trigo, açúcar de confeiteiro, chocolate granulado para a cobertura e chantilly. Passou sem pressa no caixa, pagou com cartão de crédito, jogou a conta no futuro. Voltou ao apartamento dele, de onde acabara de conquistar as chaves, depois de ganhar o coração do dono, e sabia que teria uma trabalheira danada pela frente até ele voltar da agência. Ovos, farinha, chocolate a postos. Misture tudo, bata bem, junte o açúcar, o fermento, conferia a receita de tempos em tempos, manteiga para untar, maconha para temperar. O brownie. Era a primeira vez que tentaria fazer em casa o space cake que experimentara em Amesterdã. Ele merecia. O cara tinha sido um bom amigo até ali, e virara namorado há pouco tempo. Todos os outros sempre a acompanharam nas bebedeiras, mas no gosto pelo fumo ele era o primeiro com quem podia dividir os baseados. Isso fazia toda a diferença. Estava decidido. Ele seria o pai dos filhos dela. Agora sim encontrara um homem com quem dividir a vida, o pisco sauer e a erva. Da sala rodeada de janelas avistava o Pacífico, e sabia que ali era só uma parada na vida que escolhera para si. A profissão a levaria cada vez mais longe, e Lima ficaria no passado. Ele a acompanharia, tinha certeza disso. A chave virou duas vezes e o assobio era a senha para a chegada dele. Aniversário de 30 anos pede brinde. Ela o recebeu com a taça escancarada, enlaçou seu pescoço e beijou a ponta do nariz. O cheiro de chocolate tinha tomado conta da casa toda. Caminhou na frente dele, que acompanhava zonzo o lá e cá dos quadris largos. Ancas à brasileira. Sem salto, ela ainda era um palmo maior do que ele, que gostava de se aninhar no externo dela, entre os seios. Foi até a cozinha, mostrou o bolo enfeitado com uma vela de coração. A festa eram eles. Para eles, só deles. A faca desceu macia pela massa, bateu no fundo do prato, voltou pelo mesmo caminho, um polegar mais para frente baixou de novo, e ele tirou o primeiro pedaço para ela. Que esperou. O dele foi ainda mais generoso. Cruzaram os braços como noivos que brindam à vida nova, ele mordeu o bolo dela, ela mordeu o bolo dele. Um presente para você, falou. Ele então sentiu a boca amortecer. As bochechas arderem. Os olhos sorrirem. Feliz aniversário, meu amor, feliz aniversário. Do outro lado do oceano, até hoje se ouvem as gargalhadas deles. Agora, já mudaram o cardápio. Preferem os cookies.

O sósia

Outra lição do Bolo Inglês: escrever como se fosse um homem, na primeira pessoa. Eu, macho? Perigo...


Não sou de fazer isso, revirar as coisas dela, nem abri a gaveta com essa intenção. Aquela caixa de veludo vinho piscou pra mim, eu vi. Não resisti. Tinha uma placa dourada em cima, acho que estava escrito algo como ‘meu amor’, ou ‘minhas lembranças’, agora tanto faz. Sentei calmamente na ponta da cama, até aí, eu juro, estava calmo. Coloquei a caixa no colo, fiquei com medo de cair alguma coisa, segurei firme com uma mão, com a outra fuçava a vida daquela vadia, me desculpe, da mulher da minha vida. Pingentinho de Santo Expedido, o das causas urgentes, santinho de Nossa Senhora Desatora dos Nós, até aí eu sabia que ela era religiosa, mas sempre achei que fosse devota de Nosso Senhor Jesus Cristo e só. Tinha umas figas e umas pimentas vermelhas velhas, secas já. Nunca soube que ela tinha superstição. Fui descobrindo uma mulher que eu não conhecia. Fitinhas do Bonfim, recortes de jornal com trechos de horóscopo, uma coisa de doido, tudo marcado com aquelas canetas verde limão, igual à camisa do Palmeiras, o senhor conhece. Não, sou Botafogo só no Rio de Janeiro. Em São Paulo, sou Palmeiras. Então, como eu estava dizendo, fui assim tirando os pedaços das coisas em que ela tinha fé e empilhando no travesseiro, deixei tudo em ordem, para nem parecer que tinha mexido naquilo. A diaba da caixinha tinha um fundo falso, é possível uma coisa dessas. Foi tentação demais. Peguei uma caneta que estava do lado do telefone, claro que só porque eu não precisava anotar nenhum número, né, se precisasse não teria achado uma caneta ao lado do telefone. Abri e vi a cara dele. Rapaz, tomei um susto de deixar bamba as pernas, mesmo sentado achei que fosse cair. Olhei para a foto como quem olha para o espelho. O cabra era eu, quer dizer, não era eu, mas era como se fosse eu. Tinha os meus olhos, o meu cabelo, o meu nariz. Como é ela tinha achado um cara que tinha o meu nariz? Justo o meu nariz, que é a coisa mais minha que eu tenho? O fulano, sei lá que nome tinha, tava escrito atrás da foto, mas fiz questão de esquecer, era, como é que se chama isso mesmo, sósia meu. Era grisalho como eu, usava óculos assim, de armação fininha, como eu. O porte não sei dizer não, mas era macho, tinha uma barriga de cerveja honesta, coisa de homem que é homem. Senti uma raiva que veio subindo do pé, não sabia ainda o que fazer com aquilo. Claro que eu sabia que não era o primeiro amor da vida dela, só nunca jamais em tempo algum poderia imaginar que ela tinha me colocado na vida dela só porque era igualzinho àquele ali. Não era ele que era meu sósia. O sósia era eu. Eu é que era parecido com aquele homem que ela tinha amado antes. Sabe, não vi mais nada. Não quis conversa. Quando ela chegou, entrou no quarto como sempre fazia, e não me viu. Eu entrei no banheiro e fiquei de guarda, esperando ela ver o estrago. Deixei tudo em cima da cama esparramado mesmo, que era para a vadia saber que eu sabia. Ela chamou meu nome, uma, duas, três vezes. A luz do banheiro eu deixei apagada, que era para não me enxergar lá. Encontrou os patuás e badulaques dela, sentou de costas pra mim, e foi revirando tudo, dava para sentir o frio na espinha dela gelando a colcha da cama. A caneta, pois é, a caneta ainda estava na minha mão. É. Foi com a caneta mesmo. Saí do breu do banheiro, e enfiei a caneta no cangote dela. Nem eu sei o que queria com aquilo, nunca pensei que uma caneta fosse capaz de degolar alguém, não, eu sei que não foi, mas jorrou sangue pela cama toda. Não arranquei a cabeça dela, mas ver aquela puta sangrar me aliviou o coração, naquela hora, aliviou. Hoje acordei com saudade dela, sabe. Era uma mulher incrível, não imaginei que ela fosse empacotar daquele jeito, sangrando feito um porco em cima da nossa cama, abraçada à foto daquele paspalho. Pensando bem, mereceu, a peste. Que falta de imaginação trocar de homem e não mudar a fachada. Sósia, faça-me o favor, não. Sósia...

Bolo inglês

Há alguns meses, Juju agitou os insanos a formar um grupo sob o comando de May Parreira, que comanda oficinas literárias. E com Ju, eu, Bruna, Lu Lorens, Dario e Luli como ingredientes, se fez o Bolo Inglês. É divertido ter temas a cada semana para escrever, ficar flertando com gêneros literários, e ir se libertando do lead, do sublead, da notícia, do gancho, essas coisas do jornalismo que amordaçam a mente. Na semana passada, a proposta era fazer uma experiência... Well... surtei em cinco minutos antes de deixar a redação, grudei tudo e saiu isso aí:


Nuncamaisumdoce.Doentesdeglicosenãopodemcomadocuradavida.
Membriagueidechocolatetiveumamortedignadequemnuncafoidelicado.
Morrimprestáveldiantedabomba.Kopenhagen.Umaduastres.Zilhoes.Trilhares.
Voltoamimemtempodemorrerumavezmais.
Maisumamordidaeocomaseinstauraparadelenuncamaisretornar.Delírioscaramelados.
Éssejuntocomdesejosaomuitosenaopodemserealizados.Acaboupramim.
Morriachoquecorrenabeiradoabismoesemfundodemim. Soumeusemrostoedesatoasentirogostodoascondestaorestodoquefuiumdia. Nadamaismeconfundenemsexplica.Morrindoatéondeninguémtemcoragem. Morrinstigadopelacuriosidadedesabercomoseriamarsemfim. E morrendofuitendovertigensenjoosoluçosentidosperdinaminhamorte. Nuncantesoubeondeficavaovaocodaorta.Caíneleporacaso.
E poracasoperdiorumodaspalavrasoltas.

Eu voltei

Matei a lôca do blog, mas continuo melhor por escrito, agora de cara limpa. Quando acordei como um ovo espatifado e fui fritada pela quentura da vida vi que só havia um caminho a seguir. Ser uma só. Uma atua outra sou eu morreu. Cá estou, sobrevivida. Sacudida. Mas não menos enlouquecida, como somos todas, mulheres, mães, atletas, profissionais, donas de casa... e escritoras de scripts nem sempre possíveis. Vou começar tudo de novo. É o início do sétimo setênio, o outono. Minhas folhas vão cair e sobre elas vou reescrever a história, com tintas menos duras e mais doces. Quem quiser que me acompanhe.