terça-feira, 20 de outubro de 2009

Carro de som

São Paulo é uma cidade saborosa e gosto de tudo nela, até do trânsito. Verdade. Eu adoro um bom e demorado congestionamento. Parece incrível, mas é ali, encalacrada dentro do carro, que vivo excelentes momentos de solidão. Ficar sozinho é um raro privilégio para quem tem família, criança, trabalho. Aposto que há outras mães, mulheres, atletas, profissionais, donas de casa, como eu, que também gostam de ficar a sós com seus ‘eus’ enquanto esperam a 23 de Maio andar, a Brasil se mover, a Rebouças alargar ou a Radial dar um passinho para a frente. A verdade é que nunca estou apenas eu comigo. Sempre tem alguém em volta. Mas no carro não. Não há um só vulto, uma miragem. A paisagem é deliciosamente sem nada. Fico só com meus pensamentos, minhas vontades, e daí choro quando quero, sorrio raramente e canto. Não sei vocês, mas adoro cantar no carro. E a escolha da trilha sonora se divide com o dial. Alguém um dia me garantiu que quem trabalha com informação precisa sempre ter uma rádio popular sintonizada, que é pra saber o que as pessoas estão ouvindo na ‘vida real’. Fiz isso por um tempo, e conseguia até distinguir quem é o Zezé, quem é o Luciano, o Chitaozinho e o Xororó. Agora não sei mais. Hoje reservo as memórias para as rádios de notícias, as que só tocam música brasileira e a 'nossa' Eldorado (não sei viver sem Alessandra Lopes e o Trilhas e Tons, nem sem o Vozes do Brasil da Patrícia Palumbo e muito menos sem a sala dos professores do Daniel Daiben). O trânsito também me dá mais tempo de ficar com os meus filhos. É que se não estou sozinha, eles estão comigo. Sou, como muitas paulistanas, mãetorista matinal. Leva uma para o balé, o outro para a natação, para o inglês, para a terapia (sim, hoje eles começam cedo a cuidar dos estragos que fazemos neles - e nem adianta chiar, pois a culpa, Freud explica, é sempre da mãe). E é nesse vaivém, nessa convivência cronometrada, que aparece a chance de colaborar com a formação musical das crianças. Às vezes ouvimos CDs, escolhidos (entre tapas e beijos) por um ou por outro. Na maior parte das vezes, o rádio é que fica ligado, apresentando a eles um ecletismo necessário para um ouvido em formação. Foi assim comigo, que de Martinho da Vila a Mozart, ouvia de tudo, e ouço até hoje. Até porcaria eu ouço, pouco importa. Porcarias fazem parte da vida e, se for ruim demais, puft, mudo de estação, desligo o som. Acabou. Delicioso poder exterminar tão facilmente o que ruim. É um exercício curioso ver se formar o gosto musical de um ser humano. E é preciso se resignar diante do inesperado. Por mais que você tente, compre a coleção completa do Palavra Cantada (Paulo Tatit e Sandra Peres são uns gênios), resgate os Saltimbancos de Chico Buarque e os discos infantis do grupo Rumo, ataque de Hélio Ziskind, nada vai adiantar. Um dia, sua garotinha vai recitar todos os 'versos' da Glamurosa, do MC Marcinho. Seu moleque vai gritar no banco de trás um Skank básico, "vou deixar... a vida me levar... para onde ela quiser". Eles vão cantar Ana Julia dos Los Hermanos, por mais que você tente impedir. E vão, aff, pedir para você colocar de novo aquela do 'bundalelê", que obviamente você não tem, mas algum amiguinho gravou num CD e deu de lembrancinha no aniversário. Mas nem todo seu esforço será em vão. À noite, quando sua menina te chamar para ouvir Bach com ela antes de dormir, você verá que a grana investida naquela coleção de clássicos valeu. Foi presente do avô, e você passará a admirar ainda mais o seu pai, que teve essa idéia brilhante. Tudo bem que no dia seguinte ela acorde imitando o gritinho estridente de Hannah Montana, ou se desfaça em agudos para cantar com a galera do High School Musical. Você também já deve ter tido seus dias de Grease... e sobreviveu.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Vico e Elvis

Estavamos ouvindo um CD de rock das antigas, e ele perguntou se tinha Elvis. Eu falei que só havia uma música, então fui até a Saraiva e comprei uma dessas coletâneas. Coloquei no carro, na volta da escola. Ele ouviu uma, duas, três músicas. E concluiu:

"Mãe, o ritmo das músicas do Elvis parece sertanejo em inglês, né?"

terça-feira, 14 de julho de 2009

O calçadão (*)

Aquela tosse não era de hoje, nem sei mais quando começou. Nada em mim é recente. Os pigarros. A dor no peito, que não era angústia, mas parecia. Aguda, dilacerante. Vinha cortando as costelas, batia no esôfago para explodir em sons aterradores. Minha neta saía correndo cada vez que eu tinha um ataque daqueles, fugia de mim. Muitos foram os que fugiram de mim. Tive tudo. Empresa, família, dinheiro e ódio. Pude ser sarcástico, pude ser cruel. Humilhar sem remorsos. Rir o riso dos que mandam diante dos que obedecem. Não que eu seja má pessoa. O poder é que dá na boca esse gosto de fel. O diagnóstico de câncer no pulmão era uma revanche da vida contra mim. De todos os que eu botei para correr. E eu agora era obrigado a ver a beleza do mundo com olhos de quem se despede sem ter tido chance de se apresentar. Deve ser um conforto viver assim. Nu. Sem medo. Sem blindagem. Sem amarras. Como aquele cara, lembro bem dele. Exibido em frente ao mar, se erguia nos ferros, suando em bicas e se achando o máximo. Devia ter uns quatro palmos de costas, o sujeito. Bíceps de titã, um abdome espartano e que dentes. A boca inteira pulsava um sorriso típico dos ignorantes, exalava bafo de canela e uma burrice que eu podia ver, pegar no vento. Tive vontade de lhe chutar o rabo. Imundo ele. Mas não. Nada no ordenamento jurídico, na constituição, em porra de lei nenhuma o proíbe de fazer isso. Eu? Por nenhum dinheiro vivo do mundo conseguiria me expor assim, barriga pra fora, pêlos à mostra, pra quem quiser ver. Nem lá, na praia. Nunca fiz isso. O status exige compostura. Sempre tive um nome na praça, uma reputação a zelar. Pergunte aos que conseguem. Aposto a resposta. Sei o que sentem. É paz. Passo reto. É hora da minha água de coco. O médico mandou. Eu preciso fazer bem à minha saúde.


(*) O primeiro texto que fiz na oficina, em 2008. Sorteei algumas palavras e escrevi seguindo a ordem na qual elas caíram sobre o papel. As palavras nos escolhem, é o que dizem. Não duvido.

domingo, 5 de julho de 2009

O conto do amor

O tal tema da oficina "Um lugar desconhecido" revisto e ampliado...


___________________________________________________________________

De rapel, ele desce, lentamente, preso aos fios de afeto que ainda pendem dentro do peito. Põe os pés na segunda costela, de cima pra baixo, e se apoia, instável, grudando e desgrudando braços e costas da carne vermelha viva que o circunda. Ir até onde nenhum outro jamais foi. Cair no coração selvagem e descobrir bem de pertinho o que sobrou de si depois de tanta vida mal escrita, por linhas tortas que nunca deram certo. Sempre soube que aquele vão oco da aorta existia, mas jamais pudera ali pisar. Agora estava ali, um expectador do estrago que suas escolhas erradas causaram. Por que fora naquela noite àquele encontro sombrio, com uma mulher desencarnada e vestida de lascívia. A paixão, a paixão, a paixão.
Pouco sabia do vale dos que morrem de amor platônico, e agora podia ver a cadeira de veludo verde, com seu nome cravado em dourado, um lugar de honra no limbo dos infelizes. Um dia quis comprar alegria, mas não sabia sorrir, e desistiu.A imagem dos azulejos azuis ainda luzia em sua memória. Ela o convidara para entrar, sentar, tomar um cafezinho, como se ele já não soubesse que dali não sairia vivo. Morreu cinco minutos depois de perguntar porque ela o escolhera, entre tantos. Ele era interessante, foi o que lembrava ter ouvido, antes de se aproximar de seu pescoço, o dela, regado a Poison, e se embriagar de tudo o que ela tinha para oferecer. Entrou, sentou, se refastelou nela inteira, ela foi dele para sempre enquanto duraram aquelas duas horas. Estava entorpecido daquela mulher e agora sabia o gosto que tinha um corpo em êxtase. Piscava os olhos fitando o teto, incrédulo, trêmulo. Sabia que ela gargalhava, mais por ver os lábios escancarados, do que por ouvir o som. Seus sentidos não funcionavam. Sentia o peso do edredon verde cheirando a guardado, um cobertor que passou a vida esperando por aquele odor de sexo e medo, e agora se enroscava nele, nela, satisfeito. As imagens turvas daqueles primeiros instantes viravam vultos, agora que sentia os pés escorregando na gosma de gordura e músculos. Olhava para dentro de si e tinha náuseas. Se vomitasse ali, seria engolido pelo ácido de suas pequenas e gigantescas maldades. As crueldades todas que cometera, com todas as mulheres antes dela, pelas quais merecia ser escalpelado, sabia disso, agora se revelavam nas vísceras. O que faria se fosse engolido pelo ódio que sempre nutriu? Conseguiu enxergar um ventrículo abrindo, fechando, abrindo, fechando, ritimado, perdido entre helenas, marias, lourdes, argh, lourdes, laura, mulheres com ele, com L, a letra, não com ele, ele, o cara, embebido em plasma, hemácias, leucócitos, plaquetas. Se afogava em água, oxigênio, glicose, proteínas, hormônios, vitaminas, gás carbônico, sais minerais, aminoácidos, lipídios e uréia. Ele coagulava. Ficaria preso ao átrio direito. Ou seria o esquerdo. O miocárdio não pulsava. Era uma hemorragia. Na metade direita do coração, onde só circula sangue venoso, ele colocou o pé esquerdo. Na esquerda, bloqueou o sangue arterial com o direito. Ficou assim, dependurado, um abismo no septo. O endocárdio necrosado. O pericárdio transparente, sedoso, ia rasgando vagarosamente. A membrana que reveste todo o coração se esgarçava aos poucos, como ele foi rompendo a vida. Não conseguia conter a fenda, se agarraria ali, mas não duraria uma piscadela da primeira vagabunda que aparecesse. Ele não resistiria a outro desprezo. Precisava urgentemente voltar à vida cafajeste que tinha levado até ali. Não encontrava nos vãos de seu ser vestígio algum do que fora um dia, e desaprendeu a viver. Queria poder voltar e contar onde estivera, que dentro do coração é só sangue e gelo, mas não teria ninguém para ouvir. Menos ainda conseguiria subir ao cume da cabeça e encontrar os buracos da vida, ser cuspido pela boca, assoado em alguma gripe, balançado depois de entupir algum ouvido, ou escapar ileso em alguma lágrima de amor derrubada. Não. Ele agora ficaria preso em si. Amuado e sem sonhos, subindo e descendo a cada soluço que insistia em dar. Chorar não sabia, mas a tristeza vinha em trancos. Suores.De onde o desejo nasce, vêm também os medos mais medonhos. Os poemas poemados. A língua. Quem sabe conseguisse ainda lamber algum beiço carnudo, como que sempre gostara, como os dela. Ela. Ela. Ela. Ela seria eterna nele. Conseguia enxergar seus rastros, um pedaço do salto alto da sandália vermelha, coisa de puta, só pode ser, fincado na ponta do estômago. Ela moraria para sempre nos seus infernos. Os restos do vestido preto de fazenda boa, coisa de grife, coisa de puta rica, só pode ser, esparramados em cima dos rins. Não. Puta ela não era que ele não era de comer puta. De onde ela saiu foi onde ele chegou. Agora podia ver, como ninguém mais, o que causara nele.Um homem devastado. Seus pulmões despedaçados. Hollywood. Trinta por dia. Ela sempre gostou de fumar, e ficava bem com cigarro entre os dedos, colocando delicadamente na ponta da boca, fazendo cara de vontade. Sempre entendeu tão bem os recados que ela mandava sem falar. Inventou uma mulher do jeito que queria que ela fosse, e assim ela era. Dentro dele ela era assim. Dobrava o indicador e ele ia. Sem avaliar riscos, sem pensar em ninguém. Nunca antes soubera que a saudade era física. Cada vez que via o rosto dela no fundo da retina, sentia um pedaço da mitral caindo. Desabava. Quanto tempo ainda teria para voltar a respirar. Seria tragado para o ralo da alma e nunca mais a veria. Nunca mais. Nunca mais é mais que a morte, sempre soube. Agora, diante daquele nunca mais um beijo, nunca mais o cheiro dela, o cangote, a coxa lisa, a panturrilha arrebitada, nunca mais ele voltaria a si. Estava entregue. A vida iria passar e ele morreria dentro dela, da vida dele, para nunca mais sair . A náusea, um antiácido resolveria, um tarja preta, nunca nada foi eficaz. A felicidade mora aqui, mas ele nao enxergava a cara dela. Via nervos e músculos em nós. Trigger points emocionais. Ele era um emaranhado de vontades não realizadas. Luz não há. Dentro da gente é um centro da terra escuro e úmido. Vulcão seria se tivesse forças, mas não era mais do que um pedaço disforme de memórias e lembranças. Também não conseguiria jogar fora o que ali ficou gravado. Os grudes dela caíram na circulação, afetando todo o funcionamento do organismo. Debilitado, ainda pensou em pular nas sobras de gordura abdominal e num salto único, sair de si. Cairia estatelado no meio da sala dela, onde entrou sem ter as chaves. “Oi amor, o que você está fazendo aqui todo ensanguentado”, ela perguntaria, sem jamais entender onde estivera. Ela nunca o chamou de amor. Ela nunca mais o chamará de amor. Ela já era nunca mais. Ele, o amor.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Toddynho

"Eu vou soltar o choro em casa."

Vico, para o pediatra que recomendou que ele não tomasse mais leite com chocolate.

sábado, 2 de maio de 2009

A lógica infantil

Vico estava, naquele tempo, estudando o Egito. Devia ter uns cinco anos de idade.
O pai, ao volante, perguntou:
"Vi, quem nasce no Egito é o que?"
A resposta veio na forma de outra pergunta:
"Um bebê?"

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Morelembaum

Ele enfia a mão embaixo do vestido, sobe sorrateiro a coxa e, na curva da virilha, pega a pontinha do elástico, levanta um pouco e solta. Plec. "Você sabia que cada calcinha tem um som?" Não. Não sabia. Mas ela gostou de pensar no assunto. Se fosse uma garota magra, como modelos, só pele e osso, a calcinha se estatelaria na bacia. Tak. Tek. Seria um estilhaço. Se fosse uma dona gorda, a calcinha faria plumft, ploft, como um colchão de água, com as banhas acompanhando o movimento como ondas. Mas se ela é assim, nem gorda nem magra, nem feia nem bonita, uma calcinha básica, bege, quase sem sexo, faz Plec. Só Plec. Uma mulher de uma nota só.

(Esse eu recuperei do SouMelhorporEscrito...)

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Por que com razão ou sem a chuva chora sua alegria?

Outro tema lá do Bolo Inglês. As reflexões é que são do Vico, que garantiu que do lado de lá do mundo não chove... Faz sentido... O texto é da época das Olimpíadas em Pequim, 2008.



Na China não chove. É do outro lado do mundo, as nuvens ficam depois do chão e as gotas caem para lá do depois, sem molhar as casas, os prédios e as pessoas. Virado do avesso, o cérebro da criança enxerga o que ninguém vê, admira o que poucos entendem e nenhum pingo de temporal chora o suficiente para demonstrar a alegria de conviver com um ser humano em formação. Ele não sabe que até chove em Pequim, mas pouca gente percebe. As densas nuvens sob a qual estão envoltos é de permanente poluição. A despeito da atitude antiesportiva dos americanos,que não precisavam ter feito aquela afronta e desembarcar nos jogos olímpicos usando máscaras de oxigênio, o ar de Pequim é impossível de ser respirado. Para ele, isso é irrelevante. Se alimenta de outras brisas, pouco liga para esportes, detesta futebol, faz natação porque a mãe manda, agora parece que está tomando gosto pela coisa. Por ele, cavaria um buraco no chão da sala que pudesse chegar até a China, uma genuína filial da fábrica do Papai Noel. É lá que fazem todos os brinquedos, acredita. Made in China. O carrinho, o Power Ranger, o Bem 10, o binóculo, até o guarda-chuva e o estojo. Quero ir para lá. Eles vieram para cá. Cem anos de imigração chinesa, pai! Não, é japonesa. Ué, não é tudo igual? Só os olhos são puxados. Bem, as roupas são de seda. E as diversões são eletrônicas. No Japão, pense bem, também não chove. Em qualquer lugar que fica para lá do depois, no além dos além, como diria Estamira, o céu não chora. Ele coça a cabeça, firma o polegar no queixo, pensador, e dispara. Em terra de gente que sorri com os olhos, a chuva só chora de alegria. Tristes de nós, poluídos de carência, chuva ácida sob os pés, que, sem dó, castiga.

O pé sem corpo

Algumas idéias de histórias sugeridas pelo Vico acabaram virando temas para nosso textos lá no Bolo Inglês, o grupo da oficina literária. O pé sem corpo foi um deles. Deu nisso aí...


Ela é duas e vive dividida. Uma atua. Outra é ela. Há dias em que não consegue entrar em cena. E quebra. A outra invade a uma e instaura o caos. Não hoje.
Como um ovo espatifado, uma gosma de clara e gema, disforme, sem a proteção da casca, nem o calor do ninho, ela acorda, sem a outra. O peito arrebenta oco, sem emoção. Olha em frente e reconhece aquele sorriso que já foi dela, as curvas bem torneadas, as pernas fortes, os seios fartos. A outra saiu de si. Encarnou e está ali, pronta para conquistar a vida que ela nunca teve coragem de viver. Vai se jogar de cabeça, sem amarras, nos corações sem dono. Irá beijar todas as bocas que tiver vontade, ler todos os livros sem ninguém para interromper, conhecer todas as cidades, vai desafiar os verbos no infinitivo, correr, nadar, navegar, naufragar, delirar, apanhar, bater. Usará o resto do tempo que tem sem deixar nenhum segundo fazendo nada. Só quando fazer nada fizer bem. Vai vestir camisas deles, comer pipoca na sala, com champanhe de primeira e homens de segunda, andar de salto alto e minissaia, bem vagabunda, pintar bocas de vermelho, unhas de vermelho, dentes de vermelho, morder línguas. Pedirá demissão, mandará patrão pastar, encontrará o que fazer, um jeito de se bancar, dormirá até mais tarde, sem responsabilidade, e terá até quem lhe traga café na cama, a danada. Animada, ela bota os olhos de pestanas longas para baixo e, surpresa. O corpo todo se fez, menos os pés. Os pés de moça, bem cuidados, estão ao lado, não grudaram nela.
Inteira em sua ferocidade, aquela outra que era ela não pode se mexer. Flutua, estupefata. É um fantasma atrás da cortina, presa pela grade da varanda, sem ter para onde ir. Os pés burilam no chão, como mães bronqueadas, e se negam a ela. Se recusam a ser dela. São pés sem corpo, não darão a ela esse gostinho, de sair pelo mundo e ser feliz. Aquelazinha não vai dançar, rodopiar, gargalhar, se embriagar, se empanturrar, se apaixonar, dar para um qualquer, qualquer um, amar e ser amada, ou nada. Ficará ali, cheia de vida e sem caminho.
Ela suspira aliviada, como se tivesse se livrado do pior de si. Levanta da cama e encara a outra, que nem chorar consegue, tão assustada e aflita que está, tão cheia de volúpia e ódio, ódio daqueles pés teimosos que não se encaixam nela. Ela sorri leve, deixou de ser de mentira, fajuta, falsa, para inglês ver. Poderia continuar no palco sendo tudo o que esperam dela, sem sofrer. Ela seria verdade. A outra, que era ela, morreu nela, saiu dela, e, quanta ironia, ficou presa num corpo se pés. Não vai poder nada do que queria, bem feito, filha da puta. Ela, que sempre soube quão perigoso é amar de verdade e queria tanto viver assim, sem paixões, só não conseguia por causa dela, daquela louca. Ela a deixava trancada no porão, mas não adiantava, não resolvia. Uma hora, a outra arrebentava o cadeado, e dava no que tantas vezes deu. Agora acabou. Tinha corpo, não tinha pés. Ela estava inteira.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

QUARENTA ANOS

Escrevi quando fiz quarenta... Achei nos meus arquivos e trouxe pra cá, dois anos depois.



Cresci lendo Paulo Francis e vendo seus comentários à noite na TV, com seus hiatos e ditongos estendidos, parara encerrar as frases em queda brusca, numa entonação que só ele tinha. Também me lembro de Ibrahim Sued, num cenário de Globo Repórter com Nacional Geografic, ademã que eu vou em frente. Também vi Clodovil e seus desenhos alongados, na TV Mulher com trilha de Rita Lee, mulher é bicho esquisito, todo mês sangra, ancorada por Marília Gabi Gabriela e Ney Gonçalves Dias. Tá, tá, tá... também vi Paula Saldanha e seus cabelos escorridos na TV Globinho e, yes, cantei Mio e Mao, Barbapapa e marmelada de marmelo, no tempo em que a Cuca Dorinha Duval se retirou de cena por matar o marido. Mas quem ama não mata, separa. E vi Malu Mulher começar de novo e contar consigo, e com a Narjara Tureta, que acabou vendedora de suco no Rio. Mas ninguém fez mais a cabeça da minha geração do que a dupla Cristina Franco e Beth Lima no Ponto de Vista, chamado com ginga por Leda Nagle, todo sábado na hora do almoço. Aquilo era moderno. Taão moderno como Francis nos estúdios de Nova York, Central Park ao fundo. O mesmo Francis que escreveu, em 1991, para o suplemento Cola do Estadão, uma lista com os livros que ele considerava mínimos para alguém ter cultura. Chequei a lista e tiquei uns dois ou três. Não li os clássicos, só aqueles por obrigação. Gostava mesmo era de ver televisão. O cinto de inutilidades, todo dia é dia, toda hora e hora... Amigo e companheiro. De ver os desenhos e de chorar com os gingles. Quero ver você não chorar, não olhar para trás, nem se arrepender do que faz. Quero ver o amor nascer e se a dor crescer você resistir e sorrir. Eu quero ter um milhão de amigos e bem mais forte poder cantar, dizia o rei Roberto Carlos em toda véspera de Natal. Aquele especial de 24 de dezembro era tão sagrado quanto a São Silvestre à meia-noite do réveillon, com a Paulista toda iluminada. Francis não correu maratonas. Mas deu um baile na linguagem, no jeito de ver e de falar das coisas. Cresci lendo Francis. Fora ele, eu era mais o boa noite do Cidão Moreira e os documentos que atestava Censura Livre e tradução Herbert Richards, São Paulo. O que será que Francis acrescentaria em sua lista original de lá pra cá? Paulo Coelho? Eguinha Pocotó? A bananada de banana continua no ar, mas não se fazem mais Cucas viscerais e doidas como antigamente. Quem ama não mata, e hoje vemos Doca Street, falando em dor para o Geneton Moraes Neto, que acha que faz as perguntas mais inteligentes do mundo. Vá ler Francis, meu amigo. Vá ler Mencken. Veja Mainardi. Quem quer polêmica bate duro e não assopra. Da lista de Francis tirei Thomas Mann e convalesci lendo A Montanha Mágica. Très jolie. Empaquei nas páginas em francês, mas agora prometo retomar. Je sui desolé, mas estou aprendendo, enfim, a falar francês. Não serve para nada, mas me prometi que leria Mann até o final, e não morro sem fazer isso. Vou dispensar o Herbert Richards desta vez. Não quero versão brasileira. Não vejo mais televisão, só o estritamente necessário. Necessário é seguir o conselho do Francis. Mas, meu caro, será mesmo que eu preciso mesmo ler a Teoria da Física Quântica? Dá pra pular esse pedaço? Pena que vida não vem com tecla foward. Se naquele tempo pudesse dar um FF, teria desligado a TV e ido estudar mais, e mais cedo. Mas nunca é tarde, certo (né João)? Sorry, periferia. Ademã que eu vou em frente. “Eu te amo meu Brasil, eu te amo; ninguém segura a juventude do Brasil.” Aff! Será que não tinha trilha sonora melhor para embalar o ufanismo da ditadura? Poderiam ter usado ‘o barquinho vai, a tardinha cai’. É mais nosso jeito, a nossa cara. Uma coisa carioca, um gringo em Nova York, um apê de aluguel na Vieira Souto, e Chico em Budapeste, pro dia nascer feliz. Beijo pro maluco do Cazuza e para a doida da Eller. Viva o povo brasileiro, eu adoro os viscerais. Bye, bye queridos, que o tempo não pára. Se ninguém acha que eu sou careta, eu sou manchete popular. Estou cansada dessa falta do que falar. Pai, afasta de mim esse cálice, de vinho tinto de sangue. Tragar a dor engolir a labuta, de que me vale ser filho da santa, melhor seria ser filho da outra. Ops, classificação 14 anos. Sai da Sala que a Dona Redonda vai explodir, o Juca de Oliveira tem asas, Sonia Braga é o estopim da bomba e nós continuamos vivendo, todos, na mesma Saramandaia. Chame o síndico! Chame o Odorico Paraguassu! Inaugure o cemitério que quero morrer virgem. Me embriagar antes que alguém me esqueça. Um beijo na Cecília, na Marília, nas crianças. O Francis aproveita pra também mandar lembranças. A todo pessoal, adeus.