terça-feira, 14 de julho de 2009

O calçadão (*)

Aquela tosse não era de hoje, nem sei mais quando começou. Nada em mim é recente. Os pigarros. A dor no peito, que não era angústia, mas parecia. Aguda, dilacerante. Vinha cortando as costelas, batia no esôfago para explodir em sons aterradores. Minha neta saía correndo cada vez que eu tinha um ataque daqueles, fugia de mim. Muitos foram os que fugiram de mim. Tive tudo. Empresa, família, dinheiro e ódio. Pude ser sarcástico, pude ser cruel. Humilhar sem remorsos. Rir o riso dos que mandam diante dos que obedecem. Não que eu seja má pessoa. O poder é que dá na boca esse gosto de fel. O diagnóstico de câncer no pulmão era uma revanche da vida contra mim. De todos os que eu botei para correr. E eu agora era obrigado a ver a beleza do mundo com olhos de quem se despede sem ter tido chance de se apresentar. Deve ser um conforto viver assim. Nu. Sem medo. Sem blindagem. Sem amarras. Como aquele cara, lembro bem dele. Exibido em frente ao mar, se erguia nos ferros, suando em bicas e se achando o máximo. Devia ter uns quatro palmos de costas, o sujeito. Bíceps de titã, um abdome espartano e que dentes. A boca inteira pulsava um sorriso típico dos ignorantes, exalava bafo de canela e uma burrice que eu podia ver, pegar no vento. Tive vontade de lhe chutar o rabo. Imundo ele. Mas não. Nada no ordenamento jurídico, na constituição, em porra de lei nenhuma o proíbe de fazer isso. Eu? Por nenhum dinheiro vivo do mundo conseguiria me expor assim, barriga pra fora, pêlos à mostra, pra quem quiser ver. Nem lá, na praia. Nunca fiz isso. O status exige compostura. Sempre tive um nome na praça, uma reputação a zelar. Pergunte aos que conseguem. Aposto a resposta. Sei o que sentem. É paz. Passo reto. É hora da minha água de coco. O médico mandou. Eu preciso fazer bem à minha saúde.


(*) O primeiro texto que fiz na oficina, em 2008. Sorteei algumas palavras e escrevi seguindo a ordem na qual elas caíram sobre o papel. As palavras nos escolhem, é o que dizem. Não duvido.

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