terça-feira, 20 de outubro de 2009

Carro de som

São Paulo é uma cidade saborosa e gosto de tudo nela, até do trânsito. Verdade. Eu adoro um bom e demorado congestionamento. Parece incrível, mas é ali, encalacrada dentro do carro, que vivo excelentes momentos de solidão. Ficar sozinho é um raro privilégio para quem tem família, criança, trabalho. Aposto que há outras mães, mulheres, atletas, profissionais, donas de casa, como eu, que também gostam de ficar a sós com seus ‘eus’ enquanto esperam a 23 de Maio andar, a Brasil se mover, a Rebouças alargar ou a Radial dar um passinho para a frente. A verdade é que nunca estou apenas eu comigo. Sempre tem alguém em volta. Mas no carro não. Não há um só vulto, uma miragem. A paisagem é deliciosamente sem nada. Fico só com meus pensamentos, minhas vontades, e daí choro quando quero, sorrio raramente e canto. Não sei vocês, mas adoro cantar no carro. E a escolha da trilha sonora se divide com o dial. Alguém um dia me garantiu que quem trabalha com informação precisa sempre ter uma rádio popular sintonizada, que é pra saber o que as pessoas estão ouvindo na ‘vida real’. Fiz isso por um tempo, e conseguia até distinguir quem é o Zezé, quem é o Luciano, o Chitaozinho e o Xororó. Agora não sei mais. Hoje reservo as memórias para as rádios de notícias, as que só tocam música brasileira e a 'nossa' Eldorado (não sei viver sem Alessandra Lopes e o Trilhas e Tons, nem sem o Vozes do Brasil da Patrícia Palumbo e muito menos sem a sala dos professores do Daniel Daiben). O trânsito também me dá mais tempo de ficar com os meus filhos. É que se não estou sozinha, eles estão comigo. Sou, como muitas paulistanas, mãetorista matinal. Leva uma para o balé, o outro para a natação, para o inglês, para a terapia (sim, hoje eles começam cedo a cuidar dos estragos que fazemos neles - e nem adianta chiar, pois a culpa, Freud explica, é sempre da mãe). E é nesse vaivém, nessa convivência cronometrada, que aparece a chance de colaborar com a formação musical das crianças. Às vezes ouvimos CDs, escolhidos (entre tapas e beijos) por um ou por outro. Na maior parte das vezes, o rádio é que fica ligado, apresentando a eles um ecletismo necessário para um ouvido em formação. Foi assim comigo, que de Martinho da Vila a Mozart, ouvia de tudo, e ouço até hoje. Até porcaria eu ouço, pouco importa. Porcarias fazem parte da vida e, se for ruim demais, puft, mudo de estação, desligo o som. Acabou. Delicioso poder exterminar tão facilmente o que ruim. É um exercício curioso ver se formar o gosto musical de um ser humano. E é preciso se resignar diante do inesperado. Por mais que você tente, compre a coleção completa do Palavra Cantada (Paulo Tatit e Sandra Peres são uns gênios), resgate os Saltimbancos de Chico Buarque e os discos infantis do grupo Rumo, ataque de Hélio Ziskind, nada vai adiantar. Um dia, sua garotinha vai recitar todos os 'versos' da Glamurosa, do MC Marcinho. Seu moleque vai gritar no banco de trás um Skank básico, "vou deixar... a vida me levar... para onde ela quiser". Eles vão cantar Ana Julia dos Los Hermanos, por mais que você tente impedir. E vão, aff, pedir para você colocar de novo aquela do 'bundalelê", que obviamente você não tem, mas algum amiguinho gravou num CD e deu de lembrancinha no aniversário. Mas nem todo seu esforço será em vão. À noite, quando sua menina te chamar para ouvir Bach com ela antes de dormir, você verá que a grana investida naquela coleção de clássicos valeu. Foi presente do avô, e você passará a admirar ainda mais o seu pai, que teve essa idéia brilhante. Tudo bem que no dia seguinte ela acorde imitando o gritinho estridente de Hannah Montana, ou se desfaça em agudos para cantar com a galera do High School Musical. Você também já deve ter tido seus dias de Grease... e sobreviveu.

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