terça-feira, 18 de novembro de 2008

O sósia

Outra lição do Bolo Inglês: escrever como se fosse um homem, na primeira pessoa. Eu, macho? Perigo...


Não sou de fazer isso, revirar as coisas dela, nem abri a gaveta com essa intenção. Aquela caixa de veludo vinho piscou pra mim, eu vi. Não resisti. Tinha uma placa dourada em cima, acho que estava escrito algo como ‘meu amor’, ou ‘minhas lembranças’, agora tanto faz. Sentei calmamente na ponta da cama, até aí, eu juro, estava calmo. Coloquei a caixa no colo, fiquei com medo de cair alguma coisa, segurei firme com uma mão, com a outra fuçava a vida daquela vadia, me desculpe, da mulher da minha vida. Pingentinho de Santo Expedido, o das causas urgentes, santinho de Nossa Senhora Desatora dos Nós, até aí eu sabia que ela era religiosa, mas sempre achei que fosse devota de Nosso Senhor Jesus Cristo e só. Tinha umas figas e umas pimentas vermelhas velhas, secas já. Nunca soube que ela tinha superstição. Fui descobrindo uma mulher que eu não conhecia. Fitinhas do Bonfim, recortes de jornal com trechos de horóscopo, uma coisa de doido, tudo marcado com aquelas canetas verde limão, igual à camisa do Palmeiras, o senhor conhece. Não, sou Botafogo só no Rio de Janeiro. Em São Paulo, sou Palmeiras. Então, como eu estava dizendo, fui assim tirando os pedaços das coisas em que ela tinha fé e empilhando no travesseiro, deixei tudo em ordem, para nem parecer que tinha mexido naquilo. A diaba da caixinha tinha um fundo falso, é possível uma coisa dessas. Foi tentação demais. Peguei uma caneta que estava do lado do telefone, claro que só porque eu não precisava anotar nenhum número, né, se precisasse não teria achado uma caneta ao lado do telefone. Abri e vi a cara dele. Rapaz, tomei um susto de deixar bamba as pernas, mesmo sentado achei que fosse cair. Olhei para a foto como quem olha para o espelho. O cabra era eu, quer dizer, não era eu, mas era como se fosse eu. Tinha os meus olhos, o meu cabelo, o meu nariz. Como é ela tinha achado um cara que tinha o meu nariz? Justo o meu nariz, que é a coisa mais minha que eu tenho? O fulano, sei lá que nome tinha, tava escrito atrás da foto, mas fiz questão de esquecer, era, como é que se chama isso mesmo, sósia meu. Era grisalho como eu, usava óculos assim, de armação fininha, como eu. O porte não sei dizer não, mas era macho, tinha uma barriga de cerveja honesta, coisa de homem que é homem. Senti uma raiva que veio subindo do pé, não sabia ainda o que fazer com aquilo. Claro que eu sabia que não era o primeiro amor da vida dela, só nunca jamais em tempo algum poderia imaginar que ela tinha me colocado na vida dela só porque era igualzinho àquele ali. Não era ele que era meu sósia. O sósia era eu. Eu é que era parecido com aquele homem que ela tinha amado antes. Sabe, não vi mais nada. Não quis conversa. Quando ela chegou, entrou no quarto como sempre fazia, e não me viu. Eu entrei no banheiro e fiquei de guarda, esperando ela ver o estrago. Deixei tudo em cima da cama esparramado mesmo, que era para a vadia saber que eu sabia. Ela chamou meu nome, uma, duas, três vezes. A luz do banheiro eu deixei apagada, que era para não me enxergar lá. Encontrou os patuás e badulaques dela, sentou de costas pra mim, e foi revirando tudo, dava para sentir o frio na espinha dela gelando a colcha da cama. A caneta, pois é, a caneta ainda estava na minha mão. É. Foi com a caneta mesmo. Saí do breu do banheiro, e enfiei a caneta no cangote dela. Nem eu sei o que queria com aquilo, nunca pensei que uma caneta fosse capaz de degolar alguém, não, eu sei que não foi, mas jorrou sangue pela cama toda. Não arranquei a cabeça dela, mas ver aquela puta sangrar me aliviou o coração, naquela hora, aliviou. Hoje acordei com saudade dela, sabe. Era uma mulher incrível, não imaginei que ela fosse empacotar daquele jeito, sangrando feito um porco em cima da nossa cama, abraçada à foto daquele paspalho. Pensando bem, mereceu, a peste. Que falta de imaginação trocar de homem e não mudar a fachada. Sósia, faça-me o favor, não. Sósia...

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