terça-feira, 18 de novembro de 2008

Tema: Um presente para você

Ele dá a primeira mordida e a boca amortece, as bochechas ardem. Os olhos sorriem e, aos poucos, ele se desintegra. Ela sabe o motivo e gargalha sem mostrar os dentes, só por dentro, numa alegria que faz cócegas na garganta. Passara a tarde no supermercado. Casa de moço solteiro, ele não tinha nenhum apetrecho dos que seriam necessários para fazer o bolo. Saiu logo depois do almoço, e dividiu os corredores com senhoras arrumadas, que davam ordens às criadas, com empregadas sozinhas e eficientes, dessas que fazem a lista de compras e resolvem a parada sem a patroa por perto, e com garotas jovens, desempregadas e bem casadas, noivinhas felizes que começavam a se dedicar à vida a dois com empenho de executivas do mercado financeiro. Misturou-se àquelas mulheres como se fosse uma delas. Até poderia ser, mas se sabia diferente, e se divertia sozinha imaginando o que aquelas donas diriam se soubessem que seus ingredientes não eram os comuns, só pareciam iguais a todos os outros. Comprou uma tigela de louça branca, um pão duro, colher de pau, uma espumadeira para bater claras em neve, assadeira, farinha de trigo, açúcar de confeiteiro, chocolate granulado para a cobertura e chantilly. Passou sem pressa no caixa, pagou com cartão de crédito, jogou a conta no futuro. Voltou ao apartamento dele, de onde acabara de conquistar as chaves, depois de ganhar o coração do dono, e sabia que teria uma trabalheira danada pela frente até ele voltar da agência. Ovos, farinha, chocolate a postos. Misture tudo, bata bem, junte o açúcar, o fermento, conferia a receita de tempos em tempos, manteiga para untar, maconha para temperar. O brownie. Era a primeira vez que tentaria fazer em casa o space cake que experimentara em Amesterdã. Ele merecia. O cara tinha sido um bom amigo até ali, e virara namorado há pouco tempo. Todos os outros sempre a acompanharam nas bebedeiras, mas no gosto pelo fumo ele era o primeiro com quem podia dividir os baseados. Isso fazia toda a diferença. Estava decidido. Ele seria o pai dos filhos dela. Agora sim encontrara um homem com quem dividir a vida, o pisco sauer e a erva. Da sala rodeada de janelas avistava o Pacífico, e sabia que ali era só uma parada na vida que escolhera para si. A profissão a levaria cada vez mais longe, e Lima ficaria no passado. Ele a acompanharia, tinha certeza disso. A chave virou duas vezes e o assobio era a senha para a chegada dele. Aniversário de 30 anos pede brinde. Ela o recebeu com a taça escancarada, enlaçou seu pescoço e beijou a ponta do nariz. O cheiro de chocolate tinha tomado conta da casa toda. Caminhou na frente dele, que acompanhava zonzo o lá e cá dos quadris largos. Ancas à brasileira. Sem salto, ela ainda era um palmo maior do que ele, que gostava de se aninhar no externo dela, entre os seios. Foi até a cozinha, mostrou o bolo enfeitado com uma vela de coração. A festa eram eles. Para eles, só deles. A faca desceu macia pela massa, bateu no fundo do prato, voltou pelo mesmo caminho, um polegar mais para frente baixou de novo, e ele tirou o primeiro pedaço para ela. Que esperou. O dele foi ainda mais generoso. Cruzaram os braços como noivos que brindam à vida nova, ele mordeu o bolo dela, ela mordeu o bolo dele. Um presente para você, falou. Ele então sentiu a boca amortecer. As bochechas arderem. Os olhos sorrirem. Feliz aniversário, meu amor, feliz aniversário. Do outro lado do oceano, até hoje se ouvem as gargalhadas deles. Agora, já mudaram o cardápio. Preferem os cookies.

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