terça-feira, 22 de junho de 2010

87

Era uma máquina de sumimento. Ela era. Foi desligando a própria vida aos poucos. Primeiro foram os compromissos, datas, nomes. Perdeu as contas de quantas vezes desejou esquecer pessoas, gestos, amores mal resolvidos, comidas mal digeridas, gostos, sabores, palavras e xingamentos. Agora, tudo se desfazia.

Não sabia mais a cor das cores. Nome completo, cep, cpf, nem endereço. Rostos dos quais tinha uma vaga ideia foram aqueles que povoaram sua memória por décadas. Agora, se desintegravam. Era o nariz de um, nos olhos do outro. O cabelo da mais velha, na cabeça da mais nova. Mãos, tato, digitais, nada tinha os mesmos nomes.

Esqueceu de onde veio, mas queria voltar para a fazenda. Não sabia aonde ir, mas não queria ficar. De tudo, só restou o amor pelos gatos e seus guizos. O tlintlin deles a trazia de volta, quando os pensamentos se perdiam. Ela era um labirinto sem retorno. Confusão. Se era dia, se era noite, tanto fazia. Barulhos não mais reconhecia. Nem vozes. Até que se calou. Não havia mais o que dizer.

Não reconhecia mais seu timbre. Sol, si, dó, das notas nenhum registro. Aquele som não fazia sentido. O samba, que lhe fora tão caro, soava tambores distantes e surdos e recorrecos e tamborins sem harmonia. O pandeiro que ele tocava estava mudo há anos. O espelho onde ela se via não se reconhecia. A sala, a mobília, os abajures que ele inventava quando moço eram um museu sem novidades.

Ria de si mesma quando perdia, pela décima vez no dia, a chave da gaveta. Pra que, meu Deus, uma gaveta? Não havia mais o que guardar. Ela esvaziava. E se nutria do óbvio, do essencial. Galinha, ovo, quem veio primeiro, tanto fazia. Nada mais tinha gosto, porque do paladar não se lembrava mais.

E nós? Por onde ficamos nós no seu redemoinho de passados distantes? Nunca lá estivemos. E nós, nomes gravados no cordão que agora leva no pescoço pro caso de se perder, nada mais somos. A ausência, o vazio. E assim a vida se esvai sem ir. Ela não se foi, mas não está mais ali. Nem aqui. Nem acolá. Não cabe mais no mundo, porque desconfia dos mundos que há no mundo. Ingrato, sujo, desvarido, azul, belo, deste, do outro, dos santos, dos bêbados, dos insanos, dos pecadores.

Quantas vezes quis bater em retirada, ameaçava, mas a porta nunca passou. Agora, o retorno é para sempre, presa nela mesma, sem saber quem é nem o que faz ali. Onde foi mesmo que deixei meus óculos? cansava de perguntar, com os óculos presos no pescoço, as lentes para o chão, suspensas no cordãozinho jaz imundo.

Onde estamos todos, seguros no resto de afeto que ela lembra de ter tido, de ter dado, vendido, negociado, fazemos qualqur negócio em troca de um pouco de atenção. Não ensinou a dignidade, que tinha de sobra, mas se recusou a passar adiante. Perferiu fincar a insegurança, sob a qual ela se erguia ainda mais poderosa. Ela era a mulher da casa. Ninguem mais o seria.

Da vaidade, veja só, não se esquece. Se banha e se perfuma, se penteia e se veste, pronta para a festa diária da vida. Rainha de suas vontades, não sabe mais o que quer, nunca soube, mas se sabe fêmea, fêmea antiga, gasta, usada, rodada, quilometrada, mas de cabelo tingido, unha vermelha e batom carmim.

Pouco resta da boca, nada tem a dizer, não lembra da última frase, não pode engatilhar a próxima. Mas sabe, sabe-se lá como, que haverá amanhã. Só não tem certeza do ontem. Olha pra trás e está na boca do abismo. Nada ficou. Os pés sentem a terra deslizar, vai-se toda ser engolida por aquele breu, a escuridão do não saber e do esquecimento. Mas vai sem sofrer. Não vai se lembrar de nada mesmo.

Antes fosse asssim com os porres, com as mancadas, com as broncas que tomamos e que damos, com os vexames, os vômitos, as choradeiras. E com as surras, as ausências, as infelicidades, as indelicadezas. Com as palavras de fel, com as malas que perdemos, com os ódios, com as vinganças. Com as maldades que desejamos, com as crueldades que cometemos. Mas não. Quando a vida se esvai e se apaga somem também o gosto da framboesa, do morango e do mirtilo.

Desaparecem Bach, Tchaikovsky e Tom Jobim. Não há mais Elizete, Lupicínio nem Martinho da Vila, que ele gostava mais do que ela, mas ela dançava junto, rodopiando nos salões, parando as festas, arrancando aplausos.

Vão-se os beijos ternos, os beliscões safados, os olhares de tesão, as passadas de mão e toda sorte de bolinações que fazem nascer o sexo, as crianças e os amores.

É o adeus. É morrer e esquecer de deitar. E esquecer, esquecer, esquecer, até sumir em si.

Um comentário:

bruna disse...

Querida Déborah,
seu texto me deixou muito emocionada. Lembrança (!) direta da minha avó e seus pequenos protestos sobre as falhas da memória que logo são substituídas por uma divertida risada - para logo em seguida já não saber mais o que tinha tanta graça...
Amei. E obrigada por voltar!
bjs